domingo, 18 de novembro de 2012

CALISTOS


“NIHIL NOVI SUB SOLE ?”

 

Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado de Agra de Freimas

natural de Caçarelhos

em tempos deputado ao Parlamento

[segundo Camilo Castelo Branco in “A queda de um Anjo”]

 

Há que antecipar uma brevíssima resenha biográfica do deputado Calisto Barbuda.

Segundo Camilo Castelo Branco, no primeiro capítulo, naturalmente que nos elucida sob a qualidade do probo representante de Caçarelhos. Transcrevo, com a vénia devida a ambos: Calisto e Camilo.

“ Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado de Agra de Freimas, tem hoje quarenta e nove anos, por ter nascido em 1815, na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda.

Seu pai, também Calisto, era cavaleiro fidalgo com filhamento, e décimo sexto varão dos Barbudas da Agra. Sua mãe, D. Basilissa Escolástica, procedia dos Silos, altas dignidades da Igreja, comendatários, sangue limpo, já bom sangue no tempo do sr. Rei D. Afonso I, fundador de Miranda.

Fez seus estudos de latinidade no seminário bracarense o filho único do morgado da Agra de Freimas, destinando-se a doutoramento in utroque jure.  Porém, como que que o pai lhe falecesse, e a mãe contrariasse a projectada formatura, em razão de ficar sozinha no solar de Caçarelhos, Calisto, como bom filho, renunciou à carreira das letras, deu-se ao governo do casal algum tanto, e muito à leitura de copiosa livraria, parte de seus avós paternos, e a maior dos doutores em cânones, cónegos, desembargadores do eclesiástico, catedráticos, chantres, arcediagos e bispos, parentela ilustríssima de sua mãe.

Casou o morgado, ao tocar pelos vinte anos, com sua segunda prima D. Teodora Barbuda de Figueiroa, morgada de Travanca, senhora de raro aviso, muito apontada em amanho de casa, e ignorante mais que o necessário para ter juízo.”

Depois de algumas voltas de texto, Camilo põe o nosso morgado a estrear-se no Parlamento [capítulo quinto]

“Estreia parlamentar de Calisto

Antes de apresentar-se na sala das sessões, Calisto Elói de Barbuda leu o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, juntamente com um colega transmontano, o abade e Estevães, sujeito de anos e doutrinas monárquico-absolutas.

O morgado de Agra embicou logo na forma do juramento, e disse que não jurava sem aspar as palavras que o obrigavam a ser inviolavelmente fiel à carta constitucional.  O abade quis amaciar-lhe a rigidez de espíritos, absolvendo-o de perjúrio, que não era sério, porque já de si o juramento era irrisório e mera brincadeira de nenhum peso na balança da justiça divina.

E alegava o clérigo esclarecido que os representantes da Nação,  conquanto jurassem fidelidade à religião católica-apostólica-romana, eram aliás ateus; jurando fidelidade ao rei, injuriavam-no nas gazetas; jurando fidelidade à Nação, avexavam-na de tributos, e alguns a queriam fundir na Espanha. Comédia e comedoria! Exclamava o abade. Se os deixarmos a eles jurar e mentir à sua vontade, a monarquia portuguesa daqui a pouco não terá mais realidade no mapa-múndi que a ilha Barataria do Miguel Cervantes, ou as ilhas beatas do poeta Alceu!


Convencido da irresponsabilidade séria do juramento parlamentar, foi Calisto Elói de Silos empossar-se da sua cadeira na representação nacional. Porém, proferido o juramento, e antes de sentar-se não teve mão de si, e disse:

- Sr. Presidente!

O abade de Estevães ainda ciciou um sio, como quem lembrava ao colega que o Regimento lhe tolhia o dom da palavra assim abrupta naquele acto; mas o presidente, como esperasse alguma extraordinária reflexão, deixou violar o artigo 3º do título e ouviu-o.

Continuou Calisto:

- Sr. Presidente! Nos primórdios da humanidade, a boa fé dispensava os juramentos; hoje em dia, para tudo se faz mister jurar, porque a boa fé desapareceu velut umbra da face da terra. Se bem me recordo, os casos de juramentos mais antigos lêem-se nas sagradas escrituras. Abraão jurou ao rei de Sodoma e ao rei de Abimélec; Elieser a Abraão; e Jacob a Labão…

O presidente, como o riso andasse já contagioso na sala e galerias, observou:

- O sr. Deputado está fora das prescrições do Regimento.  Peço licença para o convidar a sentar-se do lado que lhe convier.

- Concluo em duas palavras – tornou Calisto – conformando-me com o Regimento, e mais ainda com o jurisconsulto Struvius, o qual, no seu jurisprudentia civilis syntagma, diz que não deve exigir-se o juramento quando pode temer-se o perjúrio. Preceito de mui remontada moralidade, sr. Presidente! Preceito cujo desprezo é a causa eficiente das apostasias que desonram, dos sacrilégios que condenam as almas, e estampam na testa dos preceitos lema de opróbrio indelével. Disse.

E foi sentar-se, flauteando cromaticamente uma pitada, à beira do seu amigo abade de Estevães.

A maior parte dos legisladores estava como indecisa entre rir-se ou espantar-se do aprumo com que o transmontano, atando facilmente as frases, atirava à cara dos legisladores um murro indirecto.. Três brados lhe haviam vitoriado o cabeçalho do discurso: eram expansões de deputados legitimistas, que entre si se ficaram vitoriando de terem um homem bastante audaz, se necessário fosse, para falar ao imperante como João Mendes Cicioso falara a El-Rei D. Manuel.

- Falou à portuguesa, sr. Morgado; mas extemporaneamente – murmurou-lhe o abade de Estevães.

- A verdade é de todas as horas, abade – redarguiu Calisto. Mal de nós se havemos de esperar que ela caia a talho de fouce!... Deixem-me ir assim, que os meus constituintes assim me querem. Catão e Cícero, Hortênsio e Demóstenes não falavam segundo o Regimento. O conselheiro que disse a Afonso IV “senão procuramos outro rei” não pediu licença a presidente algum, nem viu no Regimento se era hora de lho dizer. Eu li de tento e vagar o tal Regimento, amigo abade; e a mim me quis parecer que tudo aquilo é um modo, o mais cerimonioso, de fazer calar aqueles cujos dizeres desagradam à presidência, por via de regra, mancomunada com o Governo.

- Prudentia in omnibus, diz o sábio – retorquiu o abade.

O morgado acudiu logo:

- Estote prudentes, sicut serpentes et símplices sicut columbae, disse Jesus, o sábio dos sábios.”

[fim de transcrição]

Ora isto vinha a propósito da consideração que havemos de ter, mutatis mutandis, pelas juras que por aí se fazem, mormente quando elas têm a ver com o cumprimento estrito da Constituição da República; e da obediência às suas normas e preceitos – ali plasmadas e plasmados em português escorreito – bem como no Estatuto dos Deputados, no que concerne a dois “pormenores”:
a) Validade/nulidade das leis e actos originários do Estado;
b) Independência dos votos e demais actos praticados pelos Deputados e respectiva imunidade  em função destes e enquanto tal.
    

Deixei o respectivo texto e articulado normativo noutras notas antecedentes. Nesta, apenas quero deixar o que, de há duzentos anos a esta parte, se vem entendendo como submissão a um juramento de fidelidade a um texto e a um Povo. Pena é que transcorridos estes quase dois séculos, se mantenha a actualidade da crítica camiliana! (Cuja prosa e verbo nos enriquecem sempre e não envelhecem!)

Pedi “emprestado” a Camilo Castelo Branco este Calisto, pois que, para além do personagem e do respectivo nome e prosápia, as suas incursões na análise do comportamento dos parlamentares me parecem totalmente actuais.

Gostaria de dizer que tudo corresponde a tempos idos na análise feita com argúcia na sua obra de muitos figurantes e tratantes da nossa sociedade…infelizmente, vamo-los encontrando empenhados e avassalados pelas esquinas da vida. Pena é que não haja CALISTOS no nosso Parlamento!

…e o Povo que se lixe! (transliterando as eleições do nosso Primeiro Ministro).
 
"Ou procuramos outro rei"

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